“ROUBANDO” A FUTURA ESPOSA PRA CASAR
‘O amor tem feito coisas que até mesmo Deus duvida’ e somente quem anda por esse país enorme consegue perceber comportamentos culturais pitorescos.
Ao completar meu tempo de serviço, resolvi me submeter a um exílio social para desintoxicar-me da intensa vida na cidade grande.
Quando me dei conta, já estava no norte do Piauí, numa cidadezinha em pleno semiárido nordestino, em meio a pessoas desconhecidas e de cultura diversa. Novas amizades surgiram naturalmente e, em especial, uma se mostrou mais efetiva que as demais: conheci Sebastião.
‘Bastião’ era desses caboclos talhados pela labuta diária no sol e no cabo da enxada, tendo como eterna companheira de cintura uma faca peixeira de 12 polegadas. Nascido e criado no povoado Pitombeiras, distante 40 quilômetros do centro urbano, experimentou seus primeiros passos em tudo, inclusive no amor retratado pela sua paixão incontida por Marilene, a cabocla mais linda do lugar, cujas curvas se confundiam com a silhueta sinuosa do único riacho perene que corria nas redondezas.
Marilene era uma moça donzela, penúltima de uma prole de seis meninas que Mané Saúva tirou como cria de Catarina, sua esposa. Homem de poucas palavras, Mané Saúva, quando estava em casa, se limitava a fumar um cigarro de palha e a produzir sons guturais decifrados apenas pela penitente esposa, que lhe servira no passado apenas para "tirar raça". De estatura baixa, mas corpulento, Saúva era respeitado naquele sertão pela coragem ímpar manifestada na habilidade em caçar e abater onças pardas que desciam da serra para matar bodes e ovelhas dos chiqueiros do povoado. Era conhecido também pelo bigode bem feito com navalha toda semana, sobrando apenas uma fina linha de pelos da metade para baixo, em direção ao lábio superior. Apesar de sisudo, Mané Saúva era receptivo com as visitas, exceto com algum cabra safado que viesse cortejar suas duas últimas “cabritinhas”. As outras quatro já lhe haviam sido subtraídas sem o seu consentimento.
Nesse ambiente tão hostil quanto os próprios carrascais do lugar, Bastião e Marilene alimentavam a paixão pueril, que se mostrava incontrolável com o passar dos anos, e resistiam às tentações dos encontros furtivos, ora na ribanceira do riacho, ora no meio da plantação de arroz. Queriam que a união ocorresse dentro dos preceitos da Santa Madre Igreja. Assim, tudo isso ocorria longe dos olhares de censura, apenas compactuado pelas bênçãos de Catarina, mãe bondosa, compreensiva e determinada, pois na adolescência sentira o drama de não receber a permissão do pai para namorar quando começou a sentir os primeiros raios de “influência” da idade.
O tempo passou, veio chuva, veio seca, mas a paixão permanecia intacta ao longo dos anos. Sentindo a dificuldade da vida no campo, Bastião foi para a cidade, onde sua mãe possuía uma casa de herança do avô. Ali, moravam os dois. O jovem apaixonado passou a trabalhar duro até abrir seu ponto de comércio e, mensalmente, voltava para suas origens para rever amigos e namorar escondido e à distância sua amada.
Num sábado cedo, sentindo que já tinha “chegado terra no tronco da macaxeira”, Bastião embainhou a faca, equipou a moto, jogou a mochila nas costas e destampou sertão adentro rumo à sua paixão proibida. Quase duas horas depois, chegou direto à casa de Marilene. Ela estava sentada no peitoril da casa, a mãe Catarina preparando o almoço e Mané Saúva sentado num tamborete, com cigarro no canto da boca, faca na cintura e pacientemente debulhando os sacos de feijão seco colhidos durante a semana. Tal qual o pretenso sogro, nada falou e se sentou de frente ao algoz, passando a debulhar feijão como forma de aproximação.
Nesse silêncio sepulcral, permaneceram por quase duas horas: Saúva absorto na tarefa e, de vez em quando, alisava o cabo da peixeira, como se quisesse ter a certeza de que ela estava ali caso precisasse, ou como mensagem clara ao malfazejo, indicando ser sabedor de suas intenções. Bastião debulhava feijão e ganhava tempo até criar coragem para confessar suas intenções.
Chegou a hora. Bastião jogou a bacia de feijão para o lado e, mesmo sem coragem, foi direto ao ponto:
- Seu Mané, vim pedir a mão da sua filha Marilene em namoro.
Mané Saúva deixou a bacia de lado, tirou o cigarro da boca ao mesmo tempo em que sentia a ‘lapiana’ na cintura e respondeu calmamente:
- Conheço você desde criança, sei que você é trabalhador. Conheço tua família toda desde antes de você nascer. Família boa, mas não quero você namorando minha filha e muito menos se casando com ela. Assunto encerrado!
Bastião se levantou irado, alisou o cabo da faca na cintura, mas se conteve, como se já tivesse uma alternativa pronta na sua mente. Subiu na moto e rumou agalopado para a cidade. Até desaparecer na poeira da estrada, foi seguido pelo olhar tênue de Marilene, que pressentia ali o fim de um sonho.
Dias depois, durante a semana, encontrei Bastião no comércio, meio tristonho, mas disse que nada de mais havia acontecido. Achei estranho, mas segui minha vida. Naquele sábado, resolvi dormir mais cedo, pois o serviço na roça havia sido desgastante.
Estava eu em sono profundo, já passava da meia-noite. Acordei com pancadas no portão e sons de campainha. Era Bastião, eufórico. Preocupado, quis saber qual tragédia ocorrera. Daí, a surpresa: ele precisava que eu fosse com meu carro para “roubarmos” a Marilene.
Fiquei meio atônito. Ele resolveu expor seu drama. Enquanto eu me vestia, contou-me toda a história. Empolguei-me com essa loucura romântica, desconsiderando os riscos, e lá fomos nós por aquelas estradas de terra e pedra. Para os lados, somente mato. Quase três horas depois, na maior escuridão, chegamos ao ponto de encontro combinado. Na encruzilhada, não havia sinal de nenhuma alma. Esperamos um pouco e Bastião resolveu dar um assobio agudo. Não entendi aquele som. Do nada, surge Catarina, a mãe, com um lenço na cabeça. Após breve saudação a Bastião, faz um som gutural incompreensível e surge Marilene, que estava escondida atrás de uma moita, trazendo uma trouxa de roupas na cabeça.
Imediatamente, embarcamos no carro, enquanto Catarina se perdia na escuridão da madrugada em direção à sua casa.
Chegamos à cidade quando o sol já estava nascendo. Fomos direto para a casa de Bastião. Ali, Dona Pedrina, sua mãe, já nos aguardava com um café reforçado e o quarto da fugitiva pronto para recebê-la. Cumplicidade total. Essa solidariedade entre as mulheres está sempre presente quando alguma resolve fugir dos pais para casar. Na cidade grande, chamam isso de sororidade.
Foi uma operação de resgate perfeita, inclusive com risco iminente de Mané Saúva aparecer no ponto de encontro e provocar correria no meio do mato sob o brilho de sua peixeira.
Depois de um mês, encontrei Bastião na feira e resolvi perguntar sobre a vida a dois e sobre o sogro. Ele me respondeu com satisfação:
“A vida tá boa e o sogro mandou me chamar lá no sertão porque ele quer oferecer um almoço pra mim. Tu acha que eu devo ir?”
Pensei e respondi:
“Rapaz, se eu fosse você, eu não ia não. Com certeza, o prato desse almoço vai ser você.”
Minha resposta seca travou o mancebo. Com receio, Bastião ficou seis meses sem aparecer no sertão. Eis que, num belo dia, Mané Saúva veio para a cidade e resolveu rever a filha, trazendo uns agrados para o genro, pondo fim àquela peleja.
Todos já sabiam que Marilene carregava em si um filho, neto de Mané Saúva.